Creatina e segurança



Por Prof. Dr. Guilherme Artioli.

A creatina é, sem dúvidas, um dos mais populares e controversos suplementos do mercado. Apesar do seu claro e consistente efeito positivo sobre o desempenho anaeróbio, força e massa magra, a comercialização de creatina como suplemento alimentar esteve proibida no Brasil por muitos anos. Tal proibição foi justificada pelo seu possível efeito deletério sobre os rins. No entanto, erros de interpretação de dados da literatura levaram muitos a acreditar que a creatina poderia prejudicar os rins. Entenda melhor o caso.
A creatina é um composto de aminoácidos sintetizado pelo fígado, rins e pâncreas. Além de produzida pelo nosso próprio organismo, a creatina pode ser consumida na dieta, sendo encontrada principalmente nas carnes. Trata-se, portanto, de uma substância naturalmente encontrada em nosso organismo e também na nossa dieta.

O que ocorre é que parte da creatina sofre uma conversão espontânea em creatinina (por meio de uma reação não enzimática). A creatinina deve, então, ser excretada pelos rins. Dessa forma, quanto mais creatina um indivíduo consumir (seja pela dieta ou pela suplementação), maior será a quantidade de creatinina presente no sangue e excretada pelos rins.
O aumento da creatinina no sangue, que geralmente acompanha a suplementação de creatina, pode ser erroneamente interpretado como queda na função renal, porque a creatinina sérica é o exame mais utilizado na prática clínica para avaliar o funcionamento dos rins. Assim, um aumento da creatinina sérica pode ser interpretado como queda (prejuízo) na função renal, já que o rim deixaria de excretar a creatinina circulante, havendo, portanto, aumento em suas concentrações. Um caso clássico de dedução falaciosa do tipo post hoc ergo propter hoc – “depois disso, por causa disso”, onde existe uma coexistência de eventos que nos levam a deduzir erroneamente a conclusão.

Esse fato levou muitos clínicos a entender que o uso de creatina era danoso aos rins. Soma-se a isso um estudo de caso em que um jovem com problemas renais recorrentes procura um médico por apresentar uma nefrite aguda. O relato diz que o jovem também fazia uso de mais de 17 suplementos alimentares diferentes, dentre os quais a creatina (nota-se que a dose era de 2,1 g/dia, algo muito próximo do consumo pela dieta). Inexplicavelmente, o diagnóstico foi “nefrite induzida por creatina”, o que gerou enorme repercussão negativa, apesar clara falta de evidências científicas que comprovassem o risco da creatina. (Para saber mais sobre o caso, consulte: Pritchard & Kalra. The Lancet, Volume 351, Issue 9111, Pages 1252 - 1253, 1998).

Uma série de estudos recentes, bem conduzidos e controlados, que utilizaram marcadores gold-standard para avaliação da função renal demonstrou claramente que a suplementação de creatina não prejudica a função renal. A segurança da suplementação de creatina foi demonstrada em indivíduos jovens e saudáveis, e em pacientes com maior propensão à disfunção renal, como diabéticos do tipo II, idosos, e até em um jovem nefrectomizado (possui apenas 1 rim). A suplementação de creatina também já se mostrou segura em jovens que consomem dieta muito rica em proteínas e em crianças com doenças crônicas (polimiosite, dermatomiosite e lupus em suas formas juvenis – dados não publicados até julho de 2014). Por fim, estudos que acompanharam a função renal de indivíduos fazendo uso contínuo de creatina por até 10 anos também não encontraram nenhuma alteração da função renal.

É prudente considerar que, quando se faz uso de creatina, é importante que a função renal seja monitorada por outros métodos, como cistatina-C, clearance de creatinina, clearance de inulina ou de EDTA, a fim de evitar possíveis erros de diagnóstico.


REFERÊNCIAS:

1. Maganaris CN, Maughan RJ. Creatine supplementation enhances maximum voluntary isometric force and endurance capacity in resistance trained men. Acta Physiologica Scandivavica. 1998; 163: 279-297.
2. Volek JS, Duncan ND, Mazzeti SA, Staron RS, Putukian M, Gomes AL, Pearson DR, Fink WJ, Kraemer WJ. Performance and muscle fiber adaptations to creatine supplementation and heavy resistance training. Medicine and Science in Sports and Exercise. 1999; 31.
3. Gualano B, et al. Creatine supplementation does not impair kidney function in type 2 diabetic patients: a randomized, double-blind, placebo-controlled, clinical trial. Eur J Appl Physiol. 2011 May;111(5):749-56.

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